Recentemente, eu ouvi num episódio do Podcast da HBR, uma entrevista com James White e Krista White, pai e filha autores de um livro chamado “Anti-Racist Leadership: How to Transform Corporate Culture in a Race-Conscious World” (“Liderança Anti-Racista: Como Transformar a Cultura Corporativa em um Mundo Cônscio-Racial” em tradução livre). Os dois autores são americanos e pretos, sendo que James foi CEO da empresa Jamba Juice.
O tema parecia interessante mas como de outras vezes recentes, que tenho ouvido falar sobre isso, passou batido num ponto que não tenho ouvido ninguém falar: o que fazer com os racistas?
O problema com todas as teorias sobre racismo cai nesse lugar: dar uma etiqueta de racista a uma pessoa, descartando todas as outras que ela tem, como pai, mãe, irmã, filho, filha, amigo, profissional, atleta, professor, etc. Eles recebem o tratamento que dão por serem racistas. Mas é isso que vai resolver o problema? Não tem sido!
Quando penso nessa questão dos nomes e classificações, por aqueles que sofrem com o racismo, me lembro muito de uma palestra que assisti de Yuval Noah Harari, autor de “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 lições para o século XXI”, onde ele é perguntado sobre como chegamos ao holocausto e o que leva as pessoas a cometerem o genocídio. A explicação dele me deixou de queixo caído.
Yuval explicou que nós, como espécie, desenvolvemos um senso de preservação muito forte, principalmente baseado em nos manter afastados de doenças. Esse sentimento é traduzido pelo nojo, repulsa, que sentimos. Por exemplo, por que matamos (ou pedimos para alguém matar) qualquer inseto que se aproxime de nós, sem hesitar? Porque biologicamente associamos que aquele inseto nos trará doenças e por isso, é uma ameaça à nossa vida. Com base nisso, os nazistas fizeram isso com os judeus: os chamavam de baratas, sempre se referiam a eles como “baratas”, de forma tão constante, que imediatamente ao ver um judeu, as pessoas queriam se livrar delas.
Marshall Rosenberg, autor de “Comunicação Não Violenta”, fala também sobre isso. Tirar a personalização das pessoas é uma forma gigantesca de violência. Descaracterizar uma pessoa, tirar seus atributos que façam com que vejamos uma pessoa para substituir essa imagem e sensação por repulsa e nojo.
Yuval concluiu: quando esse tipo de associação é feita desde um estágio muito inicial da infância, é muito difícil transformar a percepção dessa pessoa, mesmo quando ela tem vontade de mudar.
Eu tenho amigos que são racistas, cujos pais eram racistas e desde criança, contavam piadas sobre pessoas pretas. Eu ouvia também, contava algumas. Era “normal” fazer isso. Mas enquanto eu cresci pra usar isso como uma “graça”, numa época que se fazia graça com esse tema, eu via que algumas pessoas tomavam aquilo como algo sério e verdadeiro, crescendo com um olhar raivoso e desconfiado para as pessoas pretas.
Não se nasce racista, se é transformado em racista. Sendo assim, o mundo está tratando essas pessoas como criminosos, já que a lei proíbe o racismo (o que não impede de ele existir!). E no Brasil pelo menos, criminosos desse tipo tem dois destinos, cadeia ou cancelamento.
Na cadeia, poucos vão parar. Muito provavelmente aqueles que são pobres e não tem um advogado branco e racista que consiga tirá-lo de lá.
O cancelamento tem sido uma opção mais comum. Empresas estão demitindo funcionários com atitudes racistas, deixando de contratar também. Há o cancelamento nas redes sociais, rodas de amizade, grupos de família…
Mas é aqui que eu volto ao tema inicial: é isso que resolve o problema? Cancelar a pessoa, jogar a escanteio, fingir que ela não existe? Porque as pessoas simplesmente não desaparecem. E se houver alguma raiva quanto ao tema racial, deixar uma pessoa desempregada e falando com as paredes, vai aliviar esse sentimento? Muito provavelmente não!
Pensando em quem mais entende de pessoas, quero citar meu grande mestre, Jesus Cristo. Quando vemos alguém como “racista”, esquecemos que ela é filha de alguém, pai ou mãe de alguém, irmão de alguém. Como quando levaram a mulher “adúltera”, sem nome próprio ou da família, para ser apedrejada aos pés de Jesus. Diziam a ele: “ela foi pega em adultério, a LEI diz que ela deve ser apedrejada. O que você diz?”.
Contradizer a lei seria um erro, a lei deve ser cumprida. Não acho que a lei que existe sobre o racismo deva ser revogada, deve ser mantida e cumprida. Mas quanto ao apedrejamento físico, moral e digital, Jesus olha os homens e diz, “aquele que estiver sem pecado que atire a primeira pedra”. Quem de nós está sem pecado? Quem de nós nunca errou? Quem de nós não carrega algo de ruim dentro de si, que foi modelado na infância, e que luta para sobrepujar ou nem sabe que tem?
Não meus amigos… o apedrejamento é “lícito”, mas quem tem a moral de fazê-lo? Na história bíblica, os homens vão largando as pedras e saindo, primeiro os mais velhos, depois os mais novos, provavelmente porque os primeiros lembraram mais rapidamente dos próprios erros, enquanto os mais novos tendem a se achar cheios de razão. Atirar pedras em alguém ajuda o apedrejado a melhorar, ou só satisfaz nossa sede de vingança, nosso desejo de causar a dor nos outros que nós mesmos sentimos? Precisamos ser sinceros ao menos com nós mesmos sobre isso.
Por fim, quando a mulher fica à sós com Jesus, envergonhada e ainda com a cabeça baixa, ela ouve o bom mestre perguntar: “Onde estão aqueles que te julgavam?”. Ela olha ao redor e responde “Não sobrou nenhum, senhor!”. Mas nela havia um medo, porque ele ali poderia julgá-la ,condená-la. Ele tinha autoridade moral para fazê-lo. Mas ao invés disso, ele simplesmente diz: “Tampouco vou julgá-la. Vá, e não peques mais”.
Acredito que seja essa a grande lição de vida que temos que aprender. Apedrejar não ensina. Perdoar alguém que merece o castigo ensina. A pena material deve ser cumprida, a lei deve ser aplicada. Mas o apedrejamento, a raiva, o cancelamento, a anulação da pessoa, isso não nos cabe, não nos serve. É muita hipocrisia achar que podemos julgar e condenar. E em tempos de internet, onde o anonimato dos perfis permite que se fale o que quiser, sem consequências, devemos ver com olhos melhores quem são os julgadores, quem são aqueles que arrastam pessoas para serem apedrejadas, e ver em que lado estamos: se daqueles com pedras na mão, alheios aos próprios erros, ou com o sábio e gentil mestre, que procura a salvação de todos?
Quando volto na história que contei lá no começo, sobre o quão prejudicada uma criança fica, alimentada por ideias racistas, para crescer uma pessoa com profunda dificuldade de reconhecer esse pensamento e mudar essa atitude, penso que devemos sempre proteger as vítimas do racismo em primeiro lugar, mas que devemos também entender, que de certa forma, o ser humano que possui a doença do racismo, precisa de tratamento e de cura.
Talvez seja esse o grande equívoco que cometemos, na forma como lidamos com os problemas. Declaramos guerra às coisas. Guerra às drogas, ao racismo, à homofobia, etc. E por trás da guerra, estão pessoas sendo bombardeadas, caindo feridas, ficando à esmo no mundo.
E se ao invés disso, tratássemos o racismo como uma doença? Não seria mais fácil alguém se declarar doente de racismo do que criminoso? Porque o doente pode pedir por tratamento e ajuda, enquanto o criminoso sente que precisa se esconder ou negar o que faz para não ser preso. Será que não é hora de começarmos a lidar menos com combate e mais com transformação? Menos com luta e mais com cuidado? Menos com briga e mais com acolhimento e entendimento?
Eu espero não ter ofendido ninguém com esse artigo, mas a verdade é que penso muito que um dos principais motivos que levam a problemas não serem resolvidos, é porque o problema em si não está identificado, então as pessoas não atuam na causa, e a coisa se mantém.
Por mais que estejamos falando muito sobre o racismo, eu sinto que o problema está se arrastando, e quando penso em causa, penso na pessoa que traz em si o racismo e a multiplicação dessa ideia, que surgiu na infância dessa pessoa, se arrastou por sua vida, e que muito provavelmente vai ser transferida para as próximas gerações. O racismo é fruto da ignorância e do equívoco, e para essas duas coisas só existe um remédio: uma educação com amor.
Penso que a pessoa que sofre de racismo precisa se tornar consciente de que tem essa doença. E entender os sintomas de quem tem racismo. Aprender quais frases, pensamentos e atitudes denotam isso. E se a pessoa, depois de se identificar como tendo racismo, o que deve fazer, que tipo de ajuda deve procurar e onde, para começar a se tratar. Talvez um “racistas anônimos”, um grupo de ajuda para acolher essas pessoas e ajudá-las a superar essa doença e se adequar aos novos tempos.
Espero que possamos conversar mais sobre esse tema. Espero que possamos refletir e pensar melhor sobre o assunto. Não sou o dono da razão nem aquele mais estudado no tema. Mas sinceramente, espero que esse artigo contribua, de alguma forma, para que possamos curar as pessoas, vítimas do racismo: aquelas que sofrem com preconceito por sua raça, e aqueles que sofrem por não conseguirem se livrar dessa doença tão enraizada.
Abraços,
Paulo Bomfim
21/03/2022
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